quinta-feira, fevereiro 01, 2007

Reportagem preparada

Há uns tempos entrou na minha vida, através de um ex-fotojornalista, o conceito de "reportagem preparada". Dizia ele que a fotografia documental e de reportagem sempre lhe tinham deixado uma insatisfação, um sabor a "rascunho". Aquilo não era o retrato da realidade, mas apenas o retrato possível da realidade. Segundo ele, as imagens que melhor representam um determinado acontecimento são as preparadas para representar esse acontecimento e não as que realmente se captaram no seu decorrer. E dava o exemplo dos filmes sobre a guerra, por oposição a reportagens e documentários sobre o mesmo tema. Fiquei a pensar no assunto.

No que toca ao "sabor a rascunho", pessoalmente não concordo e parece-me que tem a ver com a pessoa. Eu gosto desse rascunho e sinto-me realizado quando ele sai bem (representativo da "realidade"). O facto dele sair tantas vezes mal não me faz ter vontade de criar a minha própria realidade para melhor representar aquela que eu vi. Faz-me ter vontade de apurar a minha técnica para, face à "realidade" disponível, eu conseguir captá-la. Pelos vistos não tenho inclinação para cineasta...

No jornalismo, a fotografia é esmagadoramente mais influente do que a imagem em movimento (por todas as razões que toda a gente está farta de saber). No entanto, não é preciso pensar muito para perceber que a nossa percepção visual da realidade vai buscar muito mais ao cinema do que ao jornalismo. Eu diria que com o jornalismo (e por maioria de razão, com o fotojornalismo) são despertadas as consciências para a realidade, mas ela só se materializa visualmente com o cinema.

Vem esta lenga-lenga toda a propósito do filme recém-estreado sobre os "conflict diamonds". A exploração dos diamantes em África para financiar a guerra é um tema bem conhecido de todos. A imprensa já o debateu vezes sem conta. Sem sequer pesquisar muito, encontrei aqui e aqui dois exemplos de excelentes reportagens fotográficas sobre o assunto. Mas estou convencido que o filme vai fazer muito mais por esta causa (detesto esta palavra, mas isso é outro assunto) do que todos os documentários que se fizeram ou que possam ainda vir a fazer-se. Dirão "pois claro: o filme tem impacto mediático que nenhuma reportagem ou 'doc' podem alcançar". Mas não é só isso. Na minha opinião, o filme retrata aquela realidade de uma forma muito mais vívida que qualquer documentário e isso faz toda a diferença.

Pode argumentar-se que uma vez que eu não estive lá, não tenho forma de saber se aquilo é mesmo assim. É aí que entra o jornalismo. Nada do que se passa no filme (descontados os efeitos dramáticos de correr à frente das balas e tal...) é desmentido pelos factos jornalísticos que conhecemos. A forma como as facções beligerantes intimidam as populações, o êxodo que isso causa, as condições em que as pessoas vivem - nos campos de refugiados, nas aldeias, nas minas. Nada daquilo aparece como algo que não conhecíamos, graças ao jornalismo. No entanto, é com o filme vivemos o drama.

P.S. Naturalmente, as pessoas que não gostam dos noticiários porque não querem "ver desgraças", também se devem manter afastadas deste (género de) filme.

4 comentários:

SkinStorm disse...

http://www.diamonds.msnbc.com/ Quando se vê mais rascunhos teus?

Nuno Godinho disse...

Olá Tino,

Em relação à "realidade", a realidade é que não há uma, mas sim muitas. Acreditar que a realidade captada in loco é mais imparcial é simplesmente uma questão de fé. Eu tendo a concordar com a ideia de que um amadurecimento e distanciamento da coisa poderá ter resultados mais "reais" (salvo seja). Mas não sou ferranho. :)

Os anos 60 estão recheados de experiências dessas. Pelo que percebi aquilo que tu defendes aproxima-se do que se chama de "Cinema Directo", ou seja, a ideia de ter a câmara ligada no sítio à espera que algo aconteça, como faz talvez o Pedro Costa no filme "No Quarto de Vanda" (do qual só vi alguns excertos). Até aí tudo bem, mas o problema é que normalmente os repórteres, mesmo que inconscientemente, acabam por ser imparciais, e corre-se sempre o risco de transbordar do "Cinema Directo" para o "Cinéma Vérité" que assumidamente provoca os acontecimentos.

Nuno Godinho disse...

A eficácia do cinema, é equivalente, diria, à do teatro e do romance. Ou seja, a grande diferença não está no facto de as imagens se mexerem mas sim no facto de existir o facto tempo.

Ora eu acho que esse factor cria um vector que tem o poder de incorporar o receptor (leitor, espectador, etc) na história. A partir do momento em que o receptor projecta na história, psicologicamente ele vive de facto essa história na pele. Sendo criada uma causalidade por consequência do eixo tempo, ele sofre de facto as suas consequências. É sabido que uma pessoa é sempre muito mais sensível às coisas que experimentou na primeira pessoa do que àquelas que apenas vê acontecer nos outros.

Penso que não é apenas pela riqueza das imagens se mexerem, mas sim pelo factor tempo criar esta causalidade com a qual o receptor se identifica e que mexe com a sua moralidade. Daí que, como dizes, o cinema seja mais eficaz que o jornalismo, estejam as imagens paradas ou em movimento.

Nuno Godinho disse...

Ressalva: fiz umas pesquisas e parece que O Quarto de Vanda não é realmente cinema directo. Porque numa entrevista recente o Pedro Costa diz "O meu sonho é fazer cinema directo". Depreendo que se sonha com isso é porque nunca o fez. :)